A erva, a culpa, a cura
Aproveito o lançamento do documentário “Quebrando o tabu”, sobre descriminalização das drogas, estrelando Fernando Henrique Cardoso, para fazer um depoimento-desabafo: um amigo californiano usa maconha com fim medicinal (possui até uma carteira de identificação para, se preciso for, provar que está legalizado).
Em seu país, o consumo terapêutico dessa droga é autorizado por lei. Numa conversa, descobri que a planta o curara de um grande problema que também tenho: o bruxismo.
Fiz o teste, dando duas tragadas num desses cigarros por algumas noites alternadas. Resultado: vi-me livre das dores com que convivo a cada manhã, livre de acordar no meio da noite com a cabeça latejando, livre de, em certos dias, sequer poder mastigar uma colher de pudim.
Pensando mais no futuro, veio-me ainda a esperança de talvez não mais ter que conviver com ameaças de surdez nospróximos anos; não me sentir na iminência de uma outra cirurgia para implante de osso; dar um basta na sensação de que engoli mais um pedacinho de metal; livrar-me de uma das minhas inúmeras placas usadas para dormir (tenho de todos os tipos: plástico, silicone, acrílico — todos os materiais,
modelagens, desenhos existentes no terrível escopo do bruxismo.
Não há meditação,ioga, homeopatia, marido, Rivotril, esporte, que amenizemo sofrimento provocado pelo travamento dos dentes, muito desgastados desde a pósadolescência.
Fiquei num grande estado de excitação: a cura estava ali, a meu alcance. Pedi a duas médicas uma declaração, um depoimento, atestando que preciso fazer uso dos benefícios dessa planta. Nada obtive: nenhuma delas está autorizada a fazê-lo. “Seria ilegal”, diz uma psicóloga que defende o uso dos cigarrinhos verdes para alguns pacientes(nas internas, que fique claro).
Ensina até quem vende a droga sem química, plantada e colhida na região fluminense. Maconha orgânica. Conversei também com um advogado. Ele me disse que poderia tentar, mas dificilmente conseguiríamos alguma coisa. O único resultado
positivo seria o de estimular o debate. Foi o que me impeliu a escrever este apelo.
Quero apenas o direito de dar duas tragadas num cigarro de maconha todas as noites, na minha cama, no meu quarto — apenas duas! —, sem precisar ir morar nos Estados Unidos, vivendo na minha cidade, no meu país, sem ter que me sentir uma contribuinte do tráfico e, por tabela, da violência. Não suportaria essa culpa, mesmo sabendo que é um argumento sujeito a vários questionamentos.
Duas tragadas. É tudo. Fazem me amolecer um pouco, nada mais. Não se trata de usar a
droga como quem o faz para “suportar melhor a existência”(já ouvi isso). Simplesmente, encontrei um remédio. Uma erva. Como outras, com fins medicinais, dependendo, sempre, da dosagem. Os índios fazem bom uso de todas elas, e
o limite é estabelecido por cada um de acordo com o conhecimento acumulado ao longo de milênios.
Não tenho interesse em nenhuma droga como droga, nem para o chamado uso recreativo (álcool aqui incluído); aliás, não suporto perder o controle, em nenhuma situação.
Nem na adolescência, quando, na minha fantasia, os baseados tinham o poder de trazer
inspiração, criatividade e ideias originais para escrever textos maravilhosos, da mesma forma como os roqueiros que eu conhecia faziam com suas músicas. Claro que na época experimentei maconha, como todos os jovens da minha idade.
Uma amiga insistia para que eu fumasse mais, mais e mais (em vez de aguardar, como se deve, que as primeiras tragadas façam efeito), resultando numa primeira experiência bastante penosa que terminou em vertigem e vômito.
Não me tornei usuária, mas tive, na ocasião, um sonho intenso, marcante. Eu fumava e começava a escrever freneticamente. Parava, analisava e concordava com todos os pensamentos que surgiam, não discordava de nada. Coisas banais ficavam importantes, coisas importantes ficavam banais, mas todas iam
passando. Por vezes eu abraçava as palavras, mas elas conseguiam fugir de mim quando eu menos esperava. As letras criavam disfarces: elas
estavam ali, mas não estavam. E nem sempre seguiam a ordem de que eu gostaria. As mais sinuosas se misturavam entre si na forma de colares gigantes, que iam de um país a outro, sem se deixarem molhar no mar ao atravessá-lo. Algumas só se
perdiam, levando com elas a coesão do pensamento. O que ia me restar, então?
E escrevia, relia os textos, as sensações, as paixões, as confissões, mas tudo se esvaía. Era mesmo o fim da minha lua de mel com as palavras. A morte era preferível.
O problema é meu ou do fumo?, pensava, no sonho, cheia de uma culpa injusta.
Ou seja, durante as décadas que se seguiram, minha relação com a maconha se resumiu a esse pesadelo. Até eu tomar conhecimento desse seu lado atenuante para meu desespero pessoal. O fato é que o meu sonho agora é bem outro. Quero
apenas isto que considero essencial: não ser privada do que para mim é um medicamento que me alivia o insuportável bruxismo. Quero
poder consumir as ervas que bem entender, assim como posso usar hortelã para um
suco, ou a arruda para “limpar” um ambiente, tranquilamente.
A sálvia anda difícil, segundo me disse a espiritualista Ana Lang, que vive na Gávea RJ. Não poder usá-las? “Arrenego”. Fiz questão de escrever a palavra por achar
que combina bem com uma camponesa como eu (fui criada em fazenda), acostumada a uma
relação de intimidade e respeito com todas as plantas e, apesar disso, sem o direito de usá-las como algo útil, essas dádivas.
Aliás, quando ouvi pela primeira vez a palavra maconha, era ainda uma criança. Foi
durante uma conversa entre meu pai e um senhor muito simples, candidato a vaqueiro.
Ao ver minha mãe nervosíssima, numa crise violenta de tosse, ele perguntou se não teria um pé de maconha ali por perto. E afirmou: “Se fizesse um chá, ela
se acalmaria e ficaria logo boa.”
Nunca soubemos se isso seria real. Voltando à atualidade, considero-me, de fato, uma
cidadã: trabalho muito, pago imposto, respeito o outro. Por que, então, no meu país me proíbem um remédio que me traria a paz ante um mal que me consome? Isso dito, deixo uma pergunta: entre o bruxismo e a culpa, o que faço eu?
Texto da Lu Lacerda, publicado no O Globo de domingo dia 12/06/2011.
Fiz o teste, dando duas tragadas num desses cigarros por algumas noites alternadas. Resultado: vi-me livre das dores com que convivo a cada manhã, livre de acordar no meio da noite com a cabeça latejando, livre de, em certos dias, sequer poder mastigar uma colher de pudim.
Pensando mais no futuro, veio-me ainda a esperança de talvez não mais ter que conviver com ameaças de surdez nospróximos anos; não me sentir na iminência de uma outra cirurgia para implante de osso; dar um basta na sensação de que engoli mais um pedacinho de metal; livrar-me de uma das minhas inúmeras placas usadas para dormir (tenho de todos os tipos: plástico, silicone, acrílico — todos os materiais,
modelagens, desenhos existentes no terrível escopo do bruxismo.
Não há meditação,ioga, homeopatia, marido, Rivotril, esporte, que amenizemo sofrimento provocado pelo travamento dos dentes, muito desgastados desde a pósadolescência.
Fiquei num grande estado de excitação: a cura estava ali, a meu alcance. Pedi a duas médicas uma declaração, um depoimento, atestando que preciso fazer uso dos benefícios dessa planta. Nada obtive: nenhuma delas está autorizada a fazê-lo. “Seria ilegal”, diz uma psicóloga que defende o uso dos cigarrinhos verdes para alguns pacientes(nas internas, que fique claro).
Ensina até quem vende a droga sem química, plantada e colhida na região fluminense. Maconha orgânica. Conversei também com um advogado. Ele me disse que poderia tentar, mas dificilmente conseguiríamos alguma coisa. O único resultado
positivo seria o de estimular o debate. Foi o que me impeliu a escrever este apelo.
Quero apenas o direito de dar duas tragadas num cigarro de maconha todas as noites, na minha cama, no meu quarto — apenas duas! —, sem precisar ir morar nos Estados Unidos, vivendo na minha cidade, no meu país, sem ter que me sentir uma contribuinte do tráfico e, por tabela, da violência. Não suportaria essa culpa, mesmo sabendo que é um argumento sujeito a vários questionamentos.
Duas tragadas. É tudo. Fazem me amolecer um pouco, nada mais. Não se trata de usar a
droga como quem o faz para “suportar melhor a existência”(já ouvi isso). Simplesmente, encontrei um remédio. Uma erva. Como outras, com fins medicinais, dependendo, sempre, da dosagem. Os índios fazem bom uso de todas elas, e
o limite é estabelecido por cada um de acordo com o conhecimento acumulado ao longo de milênios.
Não tenho interesse em nenhuma droga como droga, nem para o chamado uso recreativo (álcool aqui incluído); aliás, não suporto perder o controle, em nenhuma situação.
Nem na adolescência, quando, na minha fantasia, os baseados tinham o poder de trazer
inspiração, criatividade e ideias originais para escrever textos maravilhosos, da mesma forma como os roqueiros que eu conhecia faziam com suas músicas. Claro que na época experimentei maconha, como todos os jovens da minha idade.
Uma amiga insistia para que eu fumasse mais, mais e mais (em vez de aguardar, como se deve, que as primeiras tragadas façam efeito), resultando numa primeira experiência bastante penosa que terminou em vertigem e vômito.
Não me tornei usuária, mas tive, na ocasião, um sonho intenso, marcante. Eu fumava e começava a escrever freneticamente. Parava, analisava e concordava com todos os pensamentos que surgiam, não discordava de nada. Coisas banais ficavam importantes, coisas importantes ficavam banais, mas todas iam
passando. Por vezes eu abraçava as palavras, mas elas conseguiam fugir de mim quando eu menos esperava. As letras criavam disfarces: elas
estavam ali, mas não estavam. E nem sempre seguiam a ordem de que eu gostaria. As mais sinuosas se misturavam entre si na forma de colares gigantes, que iam de um país a outro, sem se deixarem molhar no mar ao atravessá-lo. Algumas só se
perdiam, levando com elas a coesão do pensamento. O que ia me restar, então?
E escrevia, relia os textos, as sensações, as paixões, as confissões, mas tudo se esvaía. Era mesmo o fim da minha lua de mel com as palavras. A morte era preferível.
O problema é meu ou do fumo?, pensava, no sonho, cheia de uma culpa injusta.
Ou seja, durante as décadas que se seguiram, minha relação com a maconha se resumiu a esse pesadelo. Até eu tomar conhecimento desse seu lado atenuante para meu desespero pessoal. O fato é que o meu sonho agora é bem outro. Quero
apenas isto que considero essencial: não ser privada do que para mim é um medicamento que me alivia o insuportável bruxismo. Quero
poder consumir as ervas que bem entender, assim como posso usar hortelã para um
suco, ou a arruda para “limpar” um ambiente, tranquilamente.
A sálvia anda difícil, segundo me disse a espiritualista Ana Lang, que vive na Gávea RJ. Não poder usá-las? “Arrenego”. Fiz questão de escrever a palavra por achar
que combina bem com uma camponesa como eu (fui criada em fazenda), acostumada a uma
relação de intimidade e respeito com todas as plantas e, apesar disso, sem o direito de usá-las como algo útil, essas dádivas.
Aliás, quando ouvi pela primeira vez a palavra maconha, era ainda uma criança. Foi
durante uma conversa entre meu pai e um senhor muito simples, candidato a vaqueiro.
Ao ver minha mãe nervosíssima, numa crise violenta de tosse, ele perguntou se não teria um pé de maconha ali por perto. E afirmou: “Se fizesse um chá, ela
se acalmaria e ficaria logo boa.”
Nunca soubemos se isso seria real. Voltando à atualidade, considero-me, de fato, uma
cidadã: trabalho muito, pago imposto, respeito o outro. Por que, então, no meu país me proíbem um remédio que me traria a paz ante um mal que me consome? Isso dito, deixo uma pergunta: entre o bruxismo e a culpa, o que faço eu?
Texto da Lu Lacerda, publicado no O Globo de domingo dia 12/06/2011.
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